A Possibilidade da Penhora de Bem de Família de Fiador em Contratos de Locação Comercial Como Retrato da Incerteza Jurídica Brasileira
Em meio a sociedades globais, que enfrentam novas situações e conflitos diariamente, cabe ao poder judiciário a tarefa de estabilizar expectativas e garantir a previsibilidade dos negócios jurídicos. Para que isso possa acontecer é necessário que o poder judiciário seja forte e atuante, mas não mais forte que os outros poderes, nem atuante em matérias nas quais não tem prerrogativa. Nesse sentido a Constituição promulgada em 1988 falhou. No nosso país os julgados mudam conforme a opinião do juiz e a jurisprudência da Suprema Corte varia de acordo com a sua composição.
Desta forma resta prejudicada a segurança jurídica no Brasil. Os termos válidos no momento da assinatura de um contrato frequentemente perdem eficácia e validade ao longo do tempo. Uma das mais graves incertezas jurídicas que nos assola no momento é a validade da penhora de bem de família de fiador, figura fundamental na garantia dos contratos de aluguel e cuja validade vem sendo, já há muito tempo, questionada no STF.
A possibilidade de penhora de bem de família de fiador em contrato de locação é garantida em lei: a lei 8.009/901, alterada pela lei 8.245/912, rege os assuntos relacionados à penhora de bem de família e é taxativa no inciso VII do seu artigo 3º:
A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
A lei que rege a matéria não deixa dúvidas: a penhora de bem de família de fiador é aceita. A interpretação pretendida pelo legislador foi aceita nos tribunais nos anos seguintes; no entanto, quando da promulgação da Emenda Constitucional 26/20003 surgiu pela primeira vez dúvida quanto à interpretação da norma. A emenda alterou o artigo 6º da Constituição para incluir o direito social à moradia, invocando a questão do direito à moradia do próprio fiador.
Em 2005, no julgamento do RE 352.9404, Carlos Velloso, Ministro do STF à época, entendeu que a nova redação do artigo 6º não mais comportava o texto da lei 8.009/90, dado que normas ordinárias, como é o caso da lei em questão, nunca poderão se sobrepor à norma constitucional. A situação, porém, não foi pacificada na decisão do Ministro, que viu seu entendimento derrotado na tese do Tema com Repercussão Geral nº 295 do STF, publicado em 2010, que estabeleceu que:
É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000.
Esta interpretação foi aceita e aplicada na prática nos anos seguintes, como sugere a tese do Tema com Repercussão Geral nº 708 do STJ, que acompanha exatamente a mesma posição do STF em menos palavras:
É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990
O STF, no entanto, quando da publicação da tese do STJ já revia o estabelecido. O patrono Aristeu César Pinto Neto, no RE 605.7095 argumentou a invalidade da Repercussão Geral do Tema 295, dado que o texto foi estabelecido com base em julgamento em que o contrato era de locação de imóvel residencial, portanto inadequado para instruir o caso específico, que versava sobre locação de imóvel comercial. Vale ressaltar que até este momento nem a lei nem os julgados diferenciavam aluguel residencial e comercial, de forma que se esperava que seguiria a interpretação já estabelecida.
Em decisão monocrática, o Ministro Dias Toffoli negou o seguimento do recurso, apontando as várias vezes em que foi aplicada normalmente a RG do Tema 295 em casos semelhantes ao retratado6. No entanto, em agravo regimental interposto no mesmo caso, a Primeira Turma do STF decidiu pelo julgamento colegiado do recurso7. No acórdão, publicado no dia 12/06/2018, o colegiado conheceu e proveu o recurso, seguindo voto da ministra Rosa Weber para afastar a repercussão geral nos casos de contrato de aluguel de imóvel comercial8.
Até 22/09/2021 não havia tese de Tema de Repercussão Geral que pacificasse o tema, mas, no julgamento do RE 1.307.3349 foi sugerida a tese 1.127, que, quando concluída, trará um dos seguintes textos, afastando as obscuridades identificadas na tese do Tema 295.
“É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”, ou
“É impenhorável o bem de família do fiador de contrato de locação não residencial”
Até a data de hoje acompanham o primeiro texto, proposto por Alexandre de Moraes os Ministros Roberto Barroso, Nunes Marques e Dias Toffoli, enquanto o segundo, proposto por Edson Fachin é acompanhado por Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
Ao mesmo tempo em que o corrente julgamento e a subsequente tese serão taxativos na interpretação da impenhorabilidade do bem de família do fiador em contratos de locação de imóvel comercial, dado o histórico da jurisprudência, provavelmente já corre na justiça a ação que derrubará o novo entendimento, visto que, hoje, a matéria é regida não pela lei ou pela jurisprudência do STF, estabelecida há pouco mais de dez anos, mas pela opinião pessoal daqueles que a julgam.
A discussão acerca da possibilidade de penhora de bem de família do fiador em contrato de locação comercial é válida. Realmente podem ser considerados conflitantes os artigos de lei citados ao longo do texto, no entanto, é dever do poder judiciário resolver a situação uma vez e, ao longo do tempo, com fatos, leis e costumes novos rever ou não a posição. Mesmo sem alteração relevante das leis que regem o procedimento de penhora há mais de vinte anos, ainda não há certeza no assunto, a validade da penhora nesse caso específico ainda depende de julgamento futuro do STF, o que deixa na sombra locadores, fiadores e locatários, sem saber como proceder perante um hipotético contrato.
Em um país em que a proteção jurídica não vem das instituições cuja função é garanti-la, cabe ao particular revestir-se da proteção do direito quando da celebração de qualquer negócio jurídico. No Brasil o advogado não deve ser visto como um recurso, alguém para o qual apelar depois de ocorrida a injustiça, mesmo o mais simples contrato exige consultoria de um profissional antes, durante e depois de sua validade, somente assim podem ser recuperadas a previsibilidade e a segurança jurídica.
Autor: Jorge Abud, Estagiário – graduando em Direito
1- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm
2- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm
3- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc26.htm
4- https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2050580
5- https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3793360
6- https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=89396983&ext=.pdf
7- https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=162368678&ext=.pdf
8- https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339527780&ext=.pdf
9- https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6087183